A Defensoria Pública alega violação do direito à saúde para encaminhar pedido de intervenção federal no Amazonas, que checou a sete mil focos de queimadas. Há o temor de que a fumaça intensa, que sufoca Manaus, provoque uma nova crise do oxigênio, como aconteceu em 2021, durante a pandemia. Na imagem acima, barcos regionais e um grande comboio de balsas de grãos de soja parados perto do porto Bertolini. Ao fundo deveria aparecer o Encontro das Águas, mas a fumaça impede (Foto: Alberto César Araújo/ Amazônia Real).
Manaus (AM) – A Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE) encaminhou para a Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de intervenção federal no Estado. O pedido é motivado pelos quase sete mil focos de queimadas no Amazonas que prejudicam a qualidade do ar e colocam a saúde pública em sério risco. Na representação, enviada na quinta-feira (12), a DPE pede para que o órgão acione o Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que princípios constitucionais, como o direito à saúde e ao meio ambiente, estão sendo violados.
Na quarta-feira (11), Manaus viveu um dos piores dias em relação às consequências das queimadas. Encoberta por uma fumaça intensa, espalhada por todas as regiões, a cidade sufocou. O problema levou Manaus a ser o segundo pior lugar do mundo para respirar, perdendo apenas para o condado de Siskiyou, na Califórnia (EUA), que registrou níveis alarmantes de poluição por causa de incêndios florestais.
O pedido encaminhado à PGR alega que a inércia do governo de Wilson Lima (União Brasil) pode levar a uma nova crise de oxigênio em Manaus, tão grave quanto a registrada em janeiro de 2021, no auge da pandemia de Covid-19. A petição também destaca que a fumaça intensa prejudica a qualidade do ar e impacta diretamente a rotina e a qualidade de vida da população.
“A mídia denuncia a multiplicação de problemas respiratórios, como sangramentos nasais, coriza, ardência nos olhos e secura na garganta. Redes farmacêuticas relataram aumento significativo da busca por medicamentos antialérgicos e máscaras de proteção durante os meses de agosto e setembro de 2023. A Universidade Federal do Amazonas divulgou portaria autorizando a substituição das aulas presenciais pelo modelo remoto”, enfatiza a Defensoria Pública.
Em setembro, o governo estadual decretou estado de emergência ambiental, por causa da seca severa em vários municípios do interior do Amazonas e dos primeiros sinais de fumaça tóxica no ar de Manaus. A ação destinou mais de R$ 1 milhão em recursos para que brigadistas atuassem no chamado “arco do desmatamento”, ação que tem como objetivo reduzir os danos causados pelas queimadas ilegais e pelo desmatamento.
Apesar disso, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) registrou o aumento do número de focos de calor causados pelas queimadas. Em agosto, eram 4.127 focos. Em outubro, já são cerca de 6.991 – o pior resultado do ano no Amazonas e o segundo pior desde setembro de 1998.
“Mais do que meros dados estatísticos, os números demonstram a situação calamitosa da qual padece a população amazonense e, acima de tudo, a inexistência de atuação efetiva – seja esta omissão decorrente de desídia, seja pela simples carência de preparo/recursos – do governo local para solução do problema, o que se configura, aqui no Amazonas, em mais uma crise do oxigênio, talvez tão grave quanto à ocorrida em janeiro de 2021, quando a mesma gestão ineficiente fez morrer asfixiadas pessoas em Manaus”, diz um trecho do documento, assinado pelo defensor público Carlos Almeida, que foi vice de Lima em seu primeiro mandato, de 2019 a 2022.
A representação enviada à PGR afirma que a intervenção federal seria uma medida para evitar novas queimadas, responsabilizar os desmatadores ilegais e elaborar planos de curto, médio e longo prazo.
Em nota enviada à Amazônia Real, o Governo do Amazonas informou que não foi comunicado sobre o pedido de intervenção federal. A nota diz que o pedido é uma ação isolada de um defensor e “não representa o posicionamento da instituição”.
A nota afirma ainda que o governador Wilson Lima considera a ação da DPE “uma medida oportunista do defensor que assina o documento, que está se aproveitando politicamente da delicada situação ambiental do Estado”.
O governo informou que atua desde janeiro deste ano com ações voltadas para o combate ao desmatamento, queimadas e severa estiagem que atingem o Amazonas. Cita como exemplo três operações de combate às queimadas, envio de ajuda humanitária aos municípios afetados pela estiagem, decretos de emergência, pedido de ajuda humanitária e reforço no combate às queimadas junto ao Governo Federal.
Mesmo assim, segundo o documento enviado à PGR, as ações aplicadas pelo governo são ineficientes. “Há uma grave incapacidade do Estado do Amazonas em lidar com questões tão sérias. O agir do Estado não tem sido minimamente suficiente para impedir que gigantescas queimadas ocorram. Desta maneira, um grande naco da Amazônia irá desaparecer este ano, a apontar para a sua completa degradação nos próximos meses”, denuncia o texto.
Procurada, a PGR respondeu que o pedido de intervenção ainda será analisado pelo órgão nos próximos dias.
Governo negacionista
De acordo com especialistas, a grave situação não se deve exclusivamente à estiagem, que é tradicional do verão amazônico, mas também a práticas ilegais, como a supressão de vegetação para a pecuária. Na quarta-feira (11), um dos piores dias para se respirar em Manaus, o superintendente do Ibama no Amazonas, Joel Araújo, informou que a fumaça que encobre a cidade há dias vem da região metropolitana e é causada por agropecuaristas. A fumaça é o resultado das queimadas nos municípios de Careiro e Autazes, e está sendo trazida para Manaus por massas de ar.
No entanto, o governo do Amazonas nega a relação das queimadas com a fumaça que toma conta da cidade de Manaus. Em entrevista, Wilson Lima disse que o problema é agravado por uma série de fatores, como o fenômeno El Niño e a estiagem. O governador afirmou ainda que o Amazonas “está pagando por um problema que não foi ele que causou”, se referindo à crise ambiental.
“O Estado do Amazonas e o Brasil não são os maiores poluidores do mundo. Nós estamos pagando um preço por conta da poluição de países ricos, que muitas vezes tentam colocar a Amazônia no banco dos réus”, disse.
O cientista Carlos Durigan, diretor da WCS Brasil, reforça que os incêndios florestais ativos no momento são em sua maioria criminosos e gerados pelo uso indiscriminado do fogo em atividades agrícolas e pecuárias.
“Temos sim uma grande profusão de incêndios em curso no Amazonas, em especial nas áreas mais densamente ocupadas por atividades humanas. As emissões globais são a principal causa do aquecimento global que contribui para este cenário de estiagem, mas o desmatamento e as queimadas também são fortes fontes de emissão e já colocam o Brasil entre os principais países emissores de gases de efeito estufa. Temos testemunhado e registrado nos últimos anos o crescimento relacionado a esses problemas em todos os estados da Amazônia, inclusive o Amazonas, onde alguns municípios já figuram entre os mais desmatados da região”.
O cientista explica que as queimadas estão relacionadas diretamente a atividades agrícolas e pecuárias, que tem no uso do fogo a base para abertura de áreas de cultivo e de renovação de pastagens. “Infelizmente o fogo também é instrumento de criminosos que o utilizam para desmatar e ocupar ilegalmente terras públicas não destinadas ou mesmo já destinadas”, diz.
Os focos de queimadas estão espalhados por todo o território. “O fogo está em terras privadas, áreas de agricultura familiar e assentamentos, unidades de conservação, terras indígenas e quilombolas, com uma concentração maior ao longo de estradas e um aumento significativo e preocupante em ambientes de florestas de várzea e igapó”, atesta.
Para o epidemiologista Jessem Orellana, da Fiocruz Amazônia, o governo do Amazonas repete o que fez nos momentos mais críticos da epidemia de Covid-19. “Busca culpar terceiros por uma tragédia anunciada”, afirma.
“O governador não tem o mínimo pudor de anunciar, em coletiva de imprensa, que enviou poucas dúzias de brigadistas para o município de Autazes, no intuito de combater centenas de focos de incêndio. Culpou o El niño, estados vizinhos, países industrializados, mas não fez uma autocrítica sobre seu limitado número de brigadistas, o limitado alcance das ações da Defesa Civil, a precária infra-estrutura do Corpo de Bombeiros, a inexistente ou inefetiva fiscalização e coibição de incêndios, para dar alguns exemplos”, continua o pesquisador.
Saúde pública em risco
Sobre uma nova crise de oxigênio no Amazonas, por conta da fumaça tóxica que a população respira, o epidemiologista acredita que a chance é remota e não deve se concretizar a curto prazo, mas alerta para os efeitos negativos da fumaça de queimadas sobre a saúde humana.
Esses efeitos são associados, sobretudo, a problemas respiratórios como obstrução nasal, coriza, sangramento nasal, tosse seca, rouquidão, laringite, rinite, falta de ar e cansaço. Também podem resultar em problemas nos olhos, como irritação, vermelhidão, lacrimejamento, visão borrada e até mesmo conjuntivite tóxica/química ou outros problemas oftalmológicos.
“A exposição persistente à fumaça de queimadas pode complicar ou atuar como gatilho em doenças pré-existentes como asma, rinite, bronquite, pneumonia, doenças cardiovasculares e neurológicas, além de gerar perturbações no ciclo do sono ou ser associada a doenças cardiovasculares e neurológicas, especialmente em grupos etários mais vulneráveis como crianças, gestantes e idosos”, explica Orellana.
Ele lembra que os alertas sobre as previsões sobre o ameaçador período de estiagem e a interação com ações criminosas foram ignorados pelo Governo do Amazonas. “Como resultado do negacionismo da crise climática, temos não apenas severas consequências relativas à dramática seca dos rios, como também queimadas fora do controle, em especial no município de Autazes e outras cidades à margem da BR-319, onde sabemos que há nefastos interesses de pecuaristas, produtores de grãos ou mesmo de pessoas ligadas a extração ilegal de madeira e minérios”.
O epidemiologista diz que o Governo Federal precisa ter a responsabilidade de interromper “o maior sufocamento coletivo da história do Amazonas” e a destruição da Amazônia, em particular dos municípios que ficam à margem da BR-319.
“Caso não sejam tomadas medidas firmes e exemplares, é muito provável que todo o bioma situado na margem da BR-319 e quilômetros adentro desapareça do mapa, assim como aconteceu nos arredores da BR-364 em Rondônia, durante as últimas décadas”, observa.
De acordo com Carlos Durigan, a extensão dos efeitos da estiagem e do cenário instaurado de queimadas na totalidade dos municípios do Amazonas causa grandes destruições a paisagens naturais, florestas, biodiversidade e à totalidade da população do estado, que sofre ao inalar a grande quantidade de fumaça que paira sobre a região. “A extensão e intensidade dessas queimadas, mesmo já contando com vários esforços em curso para seu enfrentamento, dificulta a reversão deste quadro, que depende muito de chuvas, que infelizmente não devem chegar tão intensamente nas próximas semanas, segundo sugerem as previsões das instituições que monitoram o clima”, finaliza.
Omissão recorrente das autoridades
Em entrevista à Amazônia Real, o defensor público Carlos Almeida, que assinou o pedido de intervenção federal feito à PGR, argumentou que as queimadas de agora não são surpreendentes e era necessário um planejamento anterior e uma política pública de enfrentamento por parte do governo estadual. O defensor afirma que as ações de combate não são suficientes, e que a omissão do Estado diante do agravamento da situação implica em violação de direitos humanos.
“Não existe absolutamente nada de planejamento. O que existe é um arremedo de ações pontuais como a entrega de ranchos e envio de pessoal insuficiente para combate a queimadas. Isso ficou muito claro para nós, que já estamos aqui entrando no quarto dia com as queimadas que assolam Manaus. Estamos no quarto dia em que a cidade está com condição irrespirável e não está acontecendo uma atuação contundente de Estado, o que demonstra ineficiência na sua atuação”.
O defensor afirma que há uma série de omissões por parte dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em relação não só às queimadas no Amazonas, mas a outros crimes ambientais, como a grilagem de terras.
“Há leniência do Judiciário, porque nós estamos inclusive combatendo pela DPE processos de grilagem que estão acontecendo no estado inteiro, em especial no sul do Amazonas. Há leniência e ineficiência do Legislativo, que está mais preocupado em discutir a respeito de Israel e Palestina do que sobre nós, que estamos com o fogo acontecendo. Nós pedimos a responsabilização criminal pesada de todos os infratores ambientais, inclusive das autoridades omissas, porque está havendo omissão de autoridades. Isso precisa ser apurado”, declarou.
Almeida explica que o governo federal deve determinar de forma urgente quais são as medidas que precisam ser realizadas. “É necessário que venham equipamentos e maquinários e toda uma logística de atuação para combater as queimadas, porque não é só apagar o fogo de agora, tem que mediar o processo de queimada que está acontecendo na região metropolitana”.
Em outubro de 2009, o Tribunal de Justiça do Amazonas interferiu no problema das queimadas no estado por causa da ausência de ações do Executivo. O então presidente da Corte, desembargador Domingos Chalub, anunciou a formação de força-tarefa para dar agilidade aos processos contra infratores ambientais. A ordem do TJ foi mandar prender os criminosos ambientais. “Não podemos ficar indiferentes a esse problema que vem prejudicando a saúde da população”, afirmou Chalub à época. Na ocasião, Manaus, como agora, foi encoberta por fumaça de queimadas. Segundo o Inpe, a temperatura da cidade chegou a 45ºC com 35% de umidade relativa do ar. Uma estufa. (Colaborou Kátia Brasil)
FONTE: https://amazoniareal.com.br/queimadas-no-amazonas-um-pedido-de-socorro-ao-stf/